domingo, 23 de junho de 2013



Rua D. Antão de Almada, Nº1 - Lisboa
Perdoem-me! Vendi-me por 3 dinheiros-pedaços de marmelada, vergonhosamente deitada em cama suada de Queijo da Ilha, qual Judas esfomeada. E não. Não foi só por isso. Também me vendi por finíssimos lençóis de presunto, de um outrora excelentíssimo porco, por goles valentes de Licor de Ginja Abadia e pela doçura beata dos rebuçados de ovo. Se já acabei? Não. Também me vendi pela simpatia do Zé Martins, doutorado em Bacalhau há coisa de 40 anos, altura em que embarcou neste balcão, temperado com sal e mar. E ainda me vendi pela graça do Luís, que só leva um ano de casa mas já tem muito pouco de aprendiz. Foi só isso? Nem pensar! Ainda não vai a missa pela metade. Deixem-me então começar.
Era uma vez, numa terra de gente que gostava mais de usar garfo que espada, uma loja que eram duas. Quem chegava pelo Hortelão encontrava uma cheirosa Bacalhoaria mas se vinha pela Ginjinha dava com uma rica Manteigaria. Lá dentro ambas se encontravam, pois caminho que é bom chega a todo o lado. Vamos então voltar ao  século XIX, a um matadouro que virou talho abastecedor da verdadeira Praça da Figueira, em 56 já era uma bem sucedida Manteigaria, depois chegaram os bacalhaus e aí começou a romaria.
Idos os Silvas, ficou José Branco, dono da casa, um generoso anfitrião, ajudado pelo dedicado Zé Branco, que não é gémeo mas júnior, como convém aos negócios de tradição.
Dentro da loja a actividade é intensa, chegam turistas em rebanho, juram em línguas bárbaras que "aqueles presuntos devem ser mas é de plástico", entram senhoras indecisas  com o que querem jantar, se caras de bacalhau, se rabos de atum, curam-se queijos "doentes" lá ao fundo, já a marmelada é tão sã que podia cair assim da árvore, cortam-se fatias tão finas de presunto que dão para ler o jornal (isto se presuntos lessem jornais) na incrível e antiga engenhoca Berkel, a Jacinta e a Susana, sempre sorridentes atrás do balcão, pesam frutos secos, embrulham chouriços, alheiras e queijos, chega o cliente e diz "aquela perna dá dez bigodes à outra" e eu cá digo "deixe lá provar isso dos bigodes", passam-se nêsperas, quiabos, bananas, mandioca, feijão...  É todo um museu-dispensa, olhar só não chega, há que alambazar....
E é por isso que eu, que sou filha dessa raça que gosta mais da colher que da caneta, que desconfia de quem tem medo de engordar e de quem não sabe conjugar o verbo "petiscar"... Eu, que me derreto com sorrisinhos em forma de pratinhos com bocadinhos de "prove lá"... Como podia eu não me vender em elogios a uma loja destas?
E a vós que me julgam, se ainda existirem, troquem as pedras por copinhos de chocolate, punhados de azeitonas, bocadinhos de alheira e chouriço, lascas de bacalhau, nacos de presunto, tiras de queijo, mancheias de passas, pinhões, amêndoas... Vamos, atirem-me tudo isso. 
Mas façam-me só um favorzinho, tragam esses castigos lá da Manteigaria. 






































terça-feira, 18 de junho de 2013

O Estádio



Rua da Misericórdia, Nº 11 - Lisboa
(mapa)

Mal sabia o super conservador e romântico poeta Feliciano de Castilho (aquele que andou às turras com os jovens escritores da Geração de 70, Antero, Eça e por ai fora…) que a casa onde nasceu iria ficar conhecida por ter uma das tascas mais castiças da cidade.
O Estádio não tem néons nem reclames e fica num daqueles passeios tão largos que andar de mãozinha dada é uma roleta russa, mas quem é da casa vai lá dar de olhos fechados.
Abriu em 1901 (lê-se mil nove e um) e desde então muito pouco mudou. É aqui que vem todo o tipo de cliente comer daquela comida que se bebe, ver o telejornal, discutir o Conceito, treinar anéis de fumo, fazer estágio antes de uma noitada e devorar a carcaça mista de presunto e queijo. Para se pedir uma procissão de cervejas só tem que se chamar o Sr.Ruben, que deambula por entre as mesas e a velha caixa registadora (nada de tocar se não quer aprender o verdadeiro português de Camões). Atrás do balcão fica o Sr.Fernando, é a ele que se vai pedir papel higiénico, quando a saudade aperta.
Para além dos quadros, dos pormenores românticos do tecto, dos posters de eventos (olha o Tiago vai tocar não sei onde) e da interessantíssima fauna, não se pode perder a máquina de pinball do tempo do “Justiceiro” e a incrível jukebox, que de vez em quando entra em despique com alguém mais fadista e faz uns remixes do Embuçado até se ir lá dar um jeitinho.
E quando batem as duas badaladas (naquele relógio que nunca sai das 5:45) acaba-se a pândega (quando acaba!). Até porque não se quer acordar a freguesia, sobretudo certos poetas românticos com mau feitio.
















terça-feira, 11 de junho de 2013


XAVIER MOREIRA, O SAPATEIRO PILOTO
Rua da Graça, Nº 138 - Lisboa
(mapa)


Rezam as lendas alfacinhas que, na Graça, há um certo sapateiro especial de corrida. Mas para o encontrar, não o pode procurar, tem que ir lá dar por acaso. 

O espaço é mais apertado que bota de tropa, num misto de oficina e museu, com máquinas centenárias, sapatos moribundos, malas que precisam de liftings, cintos fartos de tanto apertar, atacadores, vernizes, escovas, colas, pregos, bifanas (era só para ver se estavam atentos), palmilhas, guarda-chuvas, calçadeiras e, no meio de tudo isto, sentado num banquinho, o Sr. Xavier Moreira.

O ofício de sapateiro foi herdado com o casamento. A família da esposa (D. Florinda) já tinha um espaço na rua Garrett e Xavier pôs as mãos ao trabalho para dar seguimento à tradição. Mas a verdade é que esta fachada esconde outra. Xavier tem uma fascinante vida dupla. Por um lado, um pacato sapateiro de bairro, por outro, um famoso piloto de corridas de automóveis.

“Ó menina, isto eu sou conhecido em todo o mundo, venha cá ver…”. E Xavier leva-me até ao seu outro museu, uma salinha-templo dedicada à sua grande paixão. É aqui que tem os motores que modificou para ganhar as corridas, as fotografias dos carros, as revistas onde apareceu, os troféus que recebeu, os equipamentos, os posters e os capacetes. Xavier conta que tem mais de cem carros guardados e, entre eles, dois amados Ferraris, lembra os tempos áureos em Montecarlo, as garrafas de Vinho do Porto que levava para Itália para trocar por peças, “daquela vez que dei um “bacalhau” ao Rei de Espanha...”

“Menina, isto contado ninguém se acredita”. Tem mesmo que se ir lá fazer a prova.

Não tem por ai uns sapatos a precisar de conserto?