quarta-feira, 18 de julho de 2012

18NOV2010 - 303º Dia - Goa agridoce!

A entrada no porto de Mormugão era muito simples e bastavam-nos cerca de 30 minutos de navegação no canal para chegar ao nosso cais. O piloto estava marcado para as 08:15 mas a nossa entrada foi sendo sucessivamente adiada, pois o cais estava ocupado por um outro navio. Mantivemo-nos a pairar no meio dos inúmeros navios fundeados no exterior e atracámos cerca das 10:00, com uma hora de atraso. Aguardava-nos o Cônsul-Geral de Portugal, Dr. António Sabido Costa, alguns oficiais da Marinha Indiana, os nossos agentes e cerca de 20 jornalistas. Recebemos o Cônsul e os Oficiais enquanto era feita uma apresentação sobre o navio e a viagem aos jornalistas. Sabíamos da coincidência de estarmos a menos de duas semanas dos 500 anos da tomada de Goa por Afonso de Albuquerque e que isso poderia ser um assunto sensível, mas também sabíamos que Goa tinha sido invadida em 1472 pelos muçulmanos e que foi ao Sultão de Bijapur que, com a ajuda dos hindus de Cochim e dos Brâmanes de Goa, Afonso de Albuquerque tomou a região pela força das armas. Assim, realçámos o papel da Sagres como navio-escola e como representação de Portugal utilizada em missões de boa vontade para o reforço dos laços de amizade com os países visitados. Não houve perguntas, apenas um pedido de depoimento do comandante. Entretanto, quando íamos a sair para a visita de cumprimentos ao Contra-almirante Comandante da Região Aero-Naval de Goa, fomos interpelados por um jornalista que nos informou acerca de um grupo de "Freedom Fighthers" e um partido politico que se manifestavam contra a presença do navio, pois encaravam a nossa visita como uma forma de comemorar a invasão de Goa. Respondemos que não nos imiscuíamos em temas de política e que as instruções que tínhamos eram para uma visita cordial e amiga. À saída das instalações portuárias, verificámos que existia um grande aparato de segurança que, aliás, se manteve ao longo da nossa estadia. O almirante estava visivelmente preocupado com o motivo da nossa visita, e só descansou quando percebeu que o navio anda há 10 meses no mar participando em várias celebrações e que esta missão não é dedicada a Goa. É que os jornais do dia traziam três artigos dedicados a uma conferência de imprensa de um partido nacionalista da oposição que estava contra a visita da Sagres e exigia que o Governador e o Chief Minister cancelassem as suas presenças nos eventos a bordo. Nos dias anteriores já tinham saído algumas noticias a anunciar a nossa visita e os eventos a bordo e estas notícias vieram em consequência das primeiras. Dissemos ao almirante que tudo isto era uma experiência nova para nós, pois normalmente somos sempre muito bem recebidos. Ele aconselhou-nos a desvalorizar o assunto, no fundo, fruto da democracia e da liberdade de expressão na Índia. Disse-nos ainda que se tratava de um grupo muito pequeno de manifestantes pacíficos e que iríamos ser muito acarinhados em Goa. Entretanto, falámos das nossas Marinhas, da Sagres e da nossa viagem, enquanto ele nos servia um chá e nos perguntava se estávamos habituados. Respondemos que sim, que o chá foi introduzido em Portugal, precisamente através dos primeiros contactos com o oriente, e que foi uma Rainha portuguesa que o levou para a Inglaterra. Ele sabia disso, pois a princesa Catarina de Bragança, filha de D. João IV, casou com Carlos II de Inglaterra e levou de dote as possessões de Bombaim e Tanger. Foi ela que introduziu o "chá das cinco" que se tornou moda naquele país e passando a ser considerada uma criação inglesa. O almirante confirmou a sua presença no nosso almoço e recepção e fez um convite a todos os nossos oficiais para uma recepção na noite do dia 15. Ao regressar a bordo, passámos por um grupo de cerca de 20 manifestantes com um cartaz onde se afirmava que receber o NRP "Sagres" era uma desgraça para Goa. Foi tudo o que vimos de contestação, embora o assunto tivesse continuado a sair nos jornais.... O nosso cônsul também nos disse para desvalorizar aquele incidente. A nossa visita estava a ser utilizada nas quezílias partidárias. Nessa tarde fomos participar, como convidados de honra, numa sessão solene de abertura de uma exposição sobre Fernão Mendes Pinto numa escola de artes e ciência onde se ensina o português. Foi em Margão, numa escola de maioria hindu, onde fomos muito bem recebidos. Havia muito interesse na Sagres e o nosso discurso foi muito aplaudido. Seguiram-se, inclusivamente, muitos pedidos para fotos que foram uma constante ao longo da nossa estadia. Seguimos directamente para um hotel de Vasco da Gama onde a Sociedade de Amizade Indo-Portuguesa nos ofereceu uma recepção. Entre os presentes, fomos apresentados ao vice-presidente do BJP, precisamente o partido que organizara a manifestação contra a nossa presença. Ele, em bom português, disse-nos que tudo aquilo não passava de política e que nada tinha contra nós. Foi até muito amistoso. No nosso discurso, agradecemos as manifestações de amizade a Portugal e apreço pela visita da Sagres que recebemos naquela noite, pois estas eram importantes para nós como contraponto à campanha do BJP. Na realidade, as pessoas sentiam-se na obrigação de pedir desculpas pela manifestação e tentavam compensar-nos ainda com mais carinho e amizade. O segundo dia foi propositadamente reservado para as visitas a bordo e livre de actividades protocolares, para descanso do pessoal. Apesar de todas as medidas de segurança, recebemos a bordo cerca de 2300 visitas que tiveram que esperar longo tempo na entrada do porto para identificação e depois transporte até ao navio. Vieram grupos de bicicleta vestidos a rigor com camisolas com a Sagres desenhada, grupos de escolas, e muitos cidadãos anónimos. Os jornais do dia tinham agora vários artigos de opinião, uns a favor da vinda a bordo das autoridades locais e outros contra. Alguns aceitavam as manifestações hostis, pelo facto de no passado se terem cometido excessos e se ter sujeitado o povo de Goa à Inquisição e à conversão forçada. Outros, por sua vez, realçaram que foi graças aos 450 anos de presença portuguesa que Goa conseguiu uma identidade e cultura únicas, que ainda hoje se distinguem do resto da Índia. Que os goeses são mais disciplinados, honestos e avançados. Que se não fossem os portugueses não havia um estado de Goa e que esta estaria integrada num dos estados vizinhos. Outro dizia que é injusto estar a tratar este assunto como se se estivesse a lidar com o Portugal anterior a 1961 e não com o Portugal democrático e moderno de hoje com quem a Índia tem muito boas relações diplomáticas. Outro dizia ainda que, quer se queira ou não, Goa continua a tirar dividendos dos 450 anos de colonização portuguesa. Que a síntese das culturas de Portugal e Goa e as muitas Igrejas, Templos, casas e edifícios governamentais são uma herança que faz agora parte da diversidade cultural da Índia e que tal não se pode escamotear. Um último comentador dizia que graças à herança portuguesa, Goa é um forte destino turístico. Muitos indianos fazem férias em Goa porque "é como ir à Europa sem pagar tanto". Há no entanto muito que preservar, e por outro lado, a contrastar com os edifícios e monumentos de traça portuguesa estão as construções em betão, sem gosto, sem critério e com um mau impacto visual. É uma consequência negativa do facto de Goa ser dos estados mais ricos da Índia, com um nível de vida duas vezes superior à média do país. Por isso, está sujeita a grande pressão, recebendo muitos migrantes internos que, segundo nos disseram, tornam as zonas urbanas mais sujas, degradas e com o trânsito muito mais caótico. Entretanto, chegou o Domingo, o dia marcado para o almoço e recepção para os quais estava convidada a elite de Goa. O Governador convidou-nos para uma visita matinal ao Palácio do Cabo, porque afinal não poderia participar no nosso almoço por ter de se deslocar a Nova Deli. Fomos juntamente com o Embaixador Luís Filipe de Castro Mendes que tinha chegado na véspera para acompanhar a visita da Sagres e para se despedir de Goa por ir em breve ocupar o lugar de Embaixador de Portugal na UNESCO. O Governador foi muito simpático e revelou conhecer bem a história da Sagres e a viagem. Elogiou a guarnição pela beleza da barca e justificou a sua ausência ao almoço lamentando não poder estar presente. Proporcionou ainda uma agradável visita ao palácio que foi do Governador de Portugal e que ainda revela a presença portuguesa em vários pormenores. Actualmente conhecido por "Cabo Raj Bhavan", o palácio é considerado a mais fina e mais antiga residência de governadores da Índia. Ao almoço compareceu apenas o Almirante Sudhir Pillai com quem mantivemos uma conversa muito aberta e agradável. Lamentou o mau aproveitamento político da nossa visita e realçou a cooperação entre a nossa Marinha e a Indiana no combate à pirataria do Corno de África. Falou-nos do Instituto Hidrográfico Indiano que se situa em Goa e que está a estudar a cartografia antiga da região baseada nos trabalhos dos portugueses que tem revelado muito rigor. Findo o almoço, caiu sobre nós uma verdadeira tempestade! Um aguaceiro fortíssimo e vento com rajadas de 35 nós. Terminou mesmo a tempo de substituir toalhas nas mesas instaladas no tombadilho para recebermos um grupo de cerca de 80 pessoas composto pelos melhores alunos de português de Goa, seus pais e professores. Aqui realizámos a cerimónia de entrega de prémios escolares, organizada pela Fundação Oriente, pela Associação de Professores de Português e pelo Instituto Camões. Distribuíram-se os prémios após alguns discursos encorajadores e servimos um lanche. Esta cerimónia, que também contou com a presença do casal Embaixador de Portugal e do Cônsul-Geral perdurará na memória dos jovens premiados e respectivas famílias. Às 19:30 começámos a receber os 230 convidados para a nossa recepção. Esteve presente toda a elite de Goa, incluindo deputados dos vários partidos, juízes, presidentes de câmara, militares, etc. Só não vieram os membros do Governo para não alimentar a polémica já levantada. Estava inclusivamente presente o Vice-presidente do BJP, com a sua família e muito feliz por estar na Sagres. Sobre a manifestação, disse que nada daquilo era contra nós e que apenas queriam embaraçar o Governo do Estado. E conseguiram! A recepção começou com a actuação de uma jovem cantora local, a Sónia Sirshat, que nos encantou com fados e mandós, a canção tradicional de Goa. Lembrem-se deste nome porque estamos certos de que chegará aos ouvidos de Portugal. As pessoas foram super simpáticas e revelaram um gosto enorme em estar a bordo. Faziam exclamações perante cada acepipe nosso! Estavam a matar saudades da portugalidade! E empenharam-se em desvalorizar as manifestações contra a nossa presença tentando compensar-nos com atenções e carinho. No dia seguinte, segunda-feira e último dia de porto, abastecemos quase 10 toneladas de mantimentos, atestamos tanques de combustível e água e tivemos ainda que deslocar o navio no cais para dar espaço para a atracação de um cargueiro. Foi uma jornada até às 16:00, muito dura para a véspera de uma navegação de três semanas até Alexandria via Canal do Suez. Este foi também o dia em que jogámos futebol contra os alunos de português, vencendo por 3-0 a "Taça da Lusofonia". Apesar de em Goa o futebol ser muito apreciado, contrariamente ao resto da Índia, a Marinha local desafiou-nos para um jogo de voleibol que perdemos por 3-1. Apesar da distância é barato alugar um táxi ou um carro com condutor para todo o dia e percorrer o Museus e Igrejas da Cidade Velha de Goa e de Pangim, o Bairro das Fontainhas em Panjim, o Forte da Aguada, o Forte Chapora, a Casa da família Menezes Braganza em Chandor, os templos hindus de Shri Mangesh, Mahalsa e Ganesh, na zona de Ponda, a Quinta das Especiarias Sahakari em Curti, etc. A Sé Catedral, a Igreja de S. Francisco de Assis, a de São Caetano, a Basílica do Bom Jesus (onde estão as relíquias de São Francisco Xavier), são dignas de uma visita pela sua dimensão e pela riqueza do seu património. Aliás, é graças a estes edifícios que Goa é Património Mundial desde 1986. As viagens de carro foram uma constante aventura com ultrapassagens à justa e nas zonas mais desapropriadas, tangentes a tudo e todos, transgressões, etc. Mas no último instante todos se entre ajudam e não se vêem acidentes. Há vacas por todo o lado e é muito normal o trânsito de uma via rápida ou dentro da cidade parar para deixar passar uma vaca ou bufalo ou mesmo esperar que eles se decidam sair da via. Até na praia há vacas! Estas comem ervas, lixo e tudo o que lhes aparece à frente. Têm um aspecto doentio e parecem cães vadios. Goa é também famosa pelas suas praias. Visitámos as praias de Calangute, Baga, Anjuna, Ozran e Vagator. Tomámos uma cerveja Kingfisher ao pôr-do-sol na famosa praia de Calangute e outra na de Candolim, onde está encalhado um enorme navio chamado Sea Princess. A cozinha goesa resulta da fusão entre a cozinha portuguesa e a indiana. É picante e saborosa. O "cabidel", a "fejuade", o "calde verde" são algumas das especialidades. Goa é das raras regiões da Índia onde se pode comer carne de vaca. Do mar provámos os camarões, lagostins, caranguejos e peixes grelhados. Nas sobremesas, era sempre a bebinca, um bolo tradicional feito às camadas e ao longo de várias horas. Ao longo da estadia fomos recebendo lembranças dos nossos amigos de Goa. Livros, fruta, artesanato, cartas, versos, etc. Muitos elementos da guarnição foram guiados pela região a convite dos nossos anfitriões. Chegou o dia da largada e, quando estávamos a preparar o navio, surgem de surpresa dezenas de embarcações todas engalanadas com balões verdes e vermelhos, com bandeiras de Portugal e da Índia, com muitas famílias, todos vestidos com a camisola da nossa selecção, com cartazes que diziam "Adeus Sagres - Viva Portugal - Goans Love You - Long Live India-Portugal" e com muita música. Muitos chamavam a nossa atenção e beijavam o escudo português no peito da camisola. Uma orquestra tocava numa embarcação versões goesas de várias canções tradicionais portuguesas. A guarnição correu à borda e deliciou-se com aqueles amantes de Portugal, aplaudindo-os e oferecendo-lhes lembranças ou apenas um sorriso e um obrigado. Encaramos este gesto de gente de mar para connosco também com um tributo aos marinheiros que vieram fazer uso do Mar para uma região em que o hinduísmo o desencorajava, os hindus nem sequer se alimentavam no mar. Eram os árabes anteriormente aos portugueses a fazer uso dele. A própria Marinha Indiana, sofreu um grande revés com a separação do Paquistão, nessa altura a grande Maioria do seu pessoal era muçulmano e optou por aquele país. Esta era a resposta aos poucos que, instrumentalizados, protestaram sobre a nossa vinda a Goa nesta altura e que vieram comer à nossa recepção e visitar o nosso navio como se nada se passasse. Esta era a resposta que nós estávamos admirados por não acontecer numa terra onde 5% da população fala português e onde há 60 000 passaportes portugueses (aqui não é permitida a dupla nacionalidade). Estávamos em crer que estes passaportes todos não passavam de um oportunismo para aceder à Europa mas afinal ainda há muita portugalidade em Goa. Obrigado doce Goa! "Dev Borem Korun" (Deus abençoe, em konkani). Não poderíamos ter passado aqui perto sem parar para estar um pouco com esta gente mas temos que lhes dar a conhecer o novo Portugal, democrático, amigo do ambiente, participativo na comunidade internacional, com investigação avançada em várias áreas, etc. Façamos com que quem vê Goa tenha vontade de ir a Lisboa, e são mais de um milhão por ano! Navegamos agora à vela e motor, a dar o nosso máximo a caminho do Corno de África. O vento já está de nordeste. A monção já virou e é um desperdício não estar a navegar só à vela mas a ameaça de pirataria é real e não podemos ir lentos e com a manobra limitada pelas velas. Seguimos os conselhos das forças navais da Europa e da NATO que estão envolvidas nas operações Atalanta e Ocean Shield e que acompanham os nossos movimentos e dos milhares de navios que se fazem ao Suez. Vamos com máximas cautelas mas a vida de bordo continua a desenrolar-se normalmente. Estamos de volta aos treinos de combate a incêndio e aos treinos de reacção a tentativa de abordagem e iniciámos ontem o Campeonato de Futeconvés do Índico onde pela primeira vez não há uma equipa de oficiais por falta de quórum devido lesões. O ambiente está bom e foi agora reforçado com a notícia da vitória por 4-0 sobre a Espanha. Temos também connosco dois convidados especiais: o fotógrafo Guta de Carvalho que já navegou na barca algumas vezes e está a ultimar um livro onde junta as fotos captadas ao longo dos últimos 20 anos com poesia portuguesa. Em Goa, veio também recolher imagens actuais para um livro onde estas contrastarão com as recolhidas por Augusto Cabrita em 1960. O escritor Joaquim Magalhães Castro, autor de livros de viagens e investigador da história da expansão portuguesa, vem fazer concorrência a estas crónicas de forma mais profissional, intercalando episódios na nossa história. Faz crónicas diárias num jornal de Macau, fará uma exposição fotográfica sobre esta experiência na Sagres que também integrará num dos seus próximos livros. A presença de ambos a bordo permite alargar o leque de temas de conversa e eles são já os primeiros ouvintes das estórias desta epopeia que está quase terminada.

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